domingo, 15 de junho de 2008

ESCRAVIDÃO NO BRASIL




“ BONS DIAS!”
“Neste jantar (...) levantei-me eu, com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade a meu escravo Pancrácio; (...) a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente que a liberdade era um Dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava á espreita, entrou na sala como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (...) pegou de outra taça e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo e entreguei a carta ao molecote. (...) De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, (...)
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
_ Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
_ Oh! Meu Sinhô! Fico.
_ ... Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
_ Artura não qué dizê nada, não, sinhô...
_ Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
_ Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e, (Deus me perdoe!) creio que até alegre.”

(Machado de Assis, ‘Bons dias’. In Diário de Notícias, p. 489-491 19/05/1888)

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